Psicanálise e Hibridez: Gênero, colonialidade e subjetivações
A figura da hibridez surge em cena como protagonista talvez um pouco tardiamente na história da psicanálise, mas ainda em tempo. “Como podemos abordar psicanaliticamente as mutações antropológicas contemporâneas nos campos das sexualidades, das sexuações, das misturas culturais e das migrações, respectivamente definidas por exclusões de gênero, sexualidade, raça, ou cultura – mas também por minorizações de classe?”, pergunta-se Thamy Ayouch. A hibridez é aqui objeto de investigação e, ao mesmo tempo, instrumento que permite à psicanálise questionar identidades monolíticas e cristalizadas. Entende-se que, na proposta de Ayouch, a psicanálise não atinge sua plena potência se não concede a devida importância ao fato de que, em sua constituição, a inclusão de elementos estrangeiros, díspares e heterogêneos lhe é familiar. A psicanálise é híbrida em sua base e, para permanecer psicanalítica, deve continuar a hibridar-se com outros discursos. Sei que nem todos concordam. Essa é uma tese a ser defendida, e Ayouch o faz e com rigor.
Atualmente, parece indiscutível que a psicanálise no Brasil está em marcha e, quem anda por aí, se mistura com o mundo. A psicanálise sai dos consultórios e ocupa espaços públicos. Ela busca migrantes e refugiados nos albergues que os alojam, ela convida a sociedade a falar de branquitude, negritude e racismo, ela se assume feminista e convida as mulheres a falarem de violência, ela vai às ruas pela democracia. Isso sem falar dos vários encontros, jornadas e colóquios sobre as diversidades sexuais e de gênero que ocorreram nos últimos anos.
Mas a psicanálise ainda é a psicanálise e, portanto, não se trata de fazer uma clínica analítica específica de determinada população nem de fundar uma psicanálise das minorias. Trata-se de refletir sobre a especificidade dos processos de subjetivação relacionados a “posições étnicas, culturais, linguísticas, sexuais e sexuadas minoritárias”, nos termos de Ayouch, frutos de relações de poder que definem o posicionamento social e psíquico dos sujeitos. Sem dúvida, ao final desse processo, certos pressupostos teóricos e alguns conceitos podem ficar estremecidos. Mas isso é o que acontece quando saímos às ruas e esbarramos em alguém ou mesmo damos de cara com um poste, não? Trememos na base e seguimos adiante, ligeiramente ou bastante modificados. Depende do encontro. Em todo caso, continuamos a ser nós mesmos…. mas o que será que isso quer realmente dizer?
O Brasil não está sozinho no mundo e as questões que vemos neste livro, além de gênero e raça, falam da relação do Ocidente com seu “outro”, seu sujeito alterizado, minoritário, em situação de dependência ou inferioridade, ameaçador. Cito Ayouch : « um grupo alterizado, portanto, não surge de uma comunidade identitária, mas da discriminação que naturaliza uma categoria e confere-lhe uma identidade homogênea diferente”. Fanon, Bhabha, Said, Khatibi, Benslama e Mignolo, todos fazem parte da vasta referência bibliográfica com a qual Ayouch nos brinda e que ajuda a pensar os vários outros – exterioridades concebidas muitas vezes à luz de nossa própria sombra. Afinal, quem inventou o Oriente? Há diferença ou há hibridez?
Os estudos pós-coloniais já receberam a devida atenção da psicanálise? Não esqueçamos que um dia também fomos colônia. E o que isso quer dizer? Podemos ler este livro como um convite a falar. E, se por vezes, na história, há riscos de nos tornarmos novamente colônia, ainda que em termos diferentes do que o fomos outrora, é hora de compreender melhor as relações de poder na atualidade e usar a psicanálise para refletir sobre elas. A quem inventamos como outro e de quem somos a invenção?
Outra novidade para a psicanálise é a proposta de uma aproximação com os estudos decoloniais, estudos que questionam acerca de um eurocentrismo, que perguntam quem inventou “nossa” América – posteriormente denominada Latina, e que indagam quem somos nós. Indígenas? Euroconsumidores? O Brasil psicanalítico está mesmo de frente para a Europa e de costas para a América Latina, como, às vezes, nossos vizinhos de fronteira sugerem? Nossa colonização e nossa língua, de fato, são outras. Mas o que isso quer dizer?
Foucault, Deleuze, Guattari, Judith Butler, Donna Haraway e Joan Scott, por sua vez, complementam a caixa de ferramentas que levam a hibridez à potência máxima de sua análise. Filosofia, estudos de gênero e teoria queer estão presentes.
Finalmente, um prefácio é um convite a ler. O que Ayouch faz com todas essas teorias, a psicanálise e a hibridez, deixo ao leitor para descobrir. Digo apenas que não faltam Freud, nem Lacan, nem metapsicologia, nem reflexões sobre a clínica. Digo também que quis mostrar ao leitor os efeitos do livro sobre mim. Ele produziu perguntas. Todas elas são ecos de uma pergunta que Thamy Ayouch já me fez pessoalmente, mais de uma vez: o que é específico da psicanálise brasileira? A hibridez não nos é estranha cá nessa terra.
Patricia Porchat
Psicanálise e Hibridez
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