CABRAL, Nelma; GAUDENZI, Paula. (eds). 2020. Ensaios sobre transexualidades: diálogos entre psicanálise e estudos de gênero. Curitiba: Calligraphie. 136p.

Autor: Vladimir Porfirio Bezerra

 

O diálogo entre a psicanálise e os estudos de gênero é desafiador, especialmente, como bem pontuam Pedro Ambra (2015) e Joel Birman (2016), quando psicólogos e psicanalistas são convocados pelos estudos contemporâneos sobre gênero e sexualidade a refletir sobre as possíveis convergências críticas na relação entre a radicalidade do inconsciente, as normatividades culturais e as diferenças irredutíveis em relação à política social.

Por outro lado, desde a década de 1980, o campo da saúde pública também tem desempenhado um crescente e importante papel ao promover reflexões que privilegiam a articulação entre determinados saberes, como as ciências sociais e a psicologia, ao debate sobre as relações entre saúde, desigualdades sociais e as violações dos direitos humanos no mundo. Nessa perspectiva, nas últimas décadas observa-se a incidência direta dos estudos das ciências sociais no pensamento psicanalítico mais contemporâneo, em especial a influência de pensadores da sociologia, da antropologia e das teorias queer nos debates sobre o corpo, a sexualidade e as emoções de um modo geral; tal percepção faz com que Ensaios sobre transexualidades: diálogos entre psicanálise e estudos de gênero seja uma experiência de leitura obrigatória a estudantes, pesquisadores das ciências humanas e profissionais psi que dedicam suas pesquisas ao tema.

De um modo geral, o conjunto de artigos organizados pelas pesquisadoras Nelma Cabral e Paula Gaudenzi expõe que em relação às transexualidades existem intersecções entre o sexual e o social a serem explorados criticamente. Isto é, as autoras – em consonância com o pensamento freudiano -, ao tomarem o conceito de desamparo para refletir sobre as questões das transexualidades, indicam que “o sujeito não pode ser pensado fora do laço social” (Cabral; Gaudenzi, 2020: 9). Como bem pontua a prefaciadora do livro, Berenice Bento, num contexto sociopolítico conservador em que o Brasil se encontra, fica claro que “a política é a outra forma de fazer a guerra continuada contra as corporalidades construídas como abjetas” (Bento, 2020: 22).

Seguindo no rastro da já histórica relação das ciências psi com as ciências sociais e os estudo no campo da transexualidade, e mais, no encontro entre a psicanálise, a teoria queer e as transexualidades, portanto, a série de artigos mergulha em questões fundamentais do universo trans, e que nas últimas décadas têm sido colocadas à uma psicanálise que dialoga diretamente com as ciências sociais, em especial a sociologia e a antropologia. Pergunta-se: qual o lugar dos corpos trans, dos sexos, e das identidades no trabalho psicanalítico? Estas são algumas questões exploradas pelos artigos.

Em Experiências transmasculinas: o corpo no mundo e a constituição de um sentimento de si, a cientista social Andressa Ribeiro se utiliza de narrativas de vida de doze homens trans na cidade de Salvador, acompanhando seus cotidianos e buscando pistas para duas perguntas: o que faz uma pessoa que foi designada “mulher” no momento do nascimento se identificar como homem ao decorrer da vida? Como o corpo, gênero e desejo se relacionam na constituição dessa identificação? Nesse sentido, a autora indica que o debate sobre o corpo na experiência trans avança no sentido de desmontar a tradicional “preparação” gestacional encerrada em designações biológicas, valores morais e códigos culturais, para assumir que corpo, gênero e desejo passam por inscrições subjetivas e influências sociais que determinam um outro sujeito. Do ponto de vista do referencial teórico, Ribeiro mostra o quão proveitoso é o diálogo entre a filosofia existencial de Maurice Merleau-Ponty e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud no que se refere a discussão sobre o corpo e “consciência no mundo”, pensando o corpo como um continuum, ou que “consciência ou mesmo o sentimento de masculinidade são formados por meio de uma existência encarnada” (Ribeiro, 2020: 125).

No artigo Corpo, corpo meu, existe alguém mais perfeito do que eu? Leila Ripoll expõe a linha tênue entre reconhecimento e identidade, quando demonstra que a luta política travada pela comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, intersexuais, assexuais) muitas vezes se aproxima de normas heterossexuais “em termos de conduta, no sentido mais conservador e resistente a uma fluidez subjetiva não identitária que mantivesse aberta a mudanças” (Ripoll, 2020: 87). Trata-se de um artigo provocativo. Ripoll atenta que – em parte – o próprio “neoliberalismo globalizado” (Ripoll, 2020: 89) e suas consequências, impregna as estruturas dos Estados nacionais e mina a potência política das sociedades, se tornando não somente uma política econômica, mas uma “racionalidade” (Ripoll, 2020: 89). Nesse sentido, para a autora, “o sujeito imerso na lógica liberal pode ser facilmente capturado por uma política normativa e avaliadora que visa ‘esclarecer’, com uma série de especialistas, se sua reinvindicação é real e legítima (…)” (Ripoll, 2020: 89). Certamente um artigo marcante, que se alinha à ideia foucaultiana da influência de uma racionalidade – característica dos governos modernos -, do dispositivo da sexualidade, e da inserção do sexo nos mecanismos de saber e poder. Nessa ótica, Ripoll coloca em xeque a relação dita indissociável da questão trans com o saber médico, por exemplo.

Nas reflexões de Natasha Helsinger em Ser e tempo do sexo: política da verdade à verdade do sujeito, e no trabalho de pesquisa de Luciano Dias em Deslocamentos do masculino: a transexualidade na vitrine, expõem-se os pontos de tensão entre a psicanálise e a teoria queer; ambos promovem um debate entre autores mais estruturalistas como Jacques Lacan e Françoise Héritier e as críticas de Judith Butler, Gayle Rubin e Joan Scott sobre a psicanálise e seu trato às questões da sexualidade.

No desafiador diálogo entre a psicanálise e a teoria queer, Helsinger indica que o debate aponta para um possível ponto de convergência entre os dois saberes: o de que o corpo que não é somente um dado natural, biológico – mas também uma produção simbólica. Contudo, a autora indica que tal constatação não é suficiente para anular uma sutil, mas importante diferença para possíveis reflexões sobre as transexualidades na atualidade: para a psicanálise tradicional o corpo representaria uma “construção imaginária” (Helsinger, 2020: 81), produto de um inconsciente articulado à cultura, enquanto para a produção intelectual pós-estruturalista, o corpo e a sexualidade seriam construções socioculturais, fruto da incidência das tecnologias, poderes e estratégias biopolíticas.

Dias, por sua vez, evoca Simone de Beauvoir e seu manifesto O segundo sexo, como um dos marcos que favoreceu questionamentos do poder e possibilidades de mudanças nas estruturas essencialistas sobre as diferenças sexuais que vigoraram nos séculos XVIII e XIX; segundo o autor, o pensamento de Beauvoir permitiu que a filosofia contemporânea “inaugurasse um patamar de interrogações sobre o feminino” (Dias, 2020: 103).

Nesse sentido, tanto Dias quanto Helsinger ajudam a pensar que as transexualidades não apenas borram as fronteiras estabelecidas pela norma para a distinção dos sexos e gêneros – assumindo uma certa agência – mas também são capturadas na outra ponta pelos discursos generalizantes da medicina, psicologia e do direito.

Mariana Pombo traz no artigo Transexualidades: entre o social e o singular o potente debate sobre uma clínica psicanalítica que se depara com pacientes que desafiam as tradicionais ferramentas teóricas para a análise das subjetividades ligadas à sexualidade; nesse sentido, para a autora, psicólogos e psicanalistas são convocados pelos sujeitos que se apresentam na clínica a desenvolver uma prática clínica mais acolhedora. As reflexões da autora propõem não apenas questionamentos sistemáticos quanto a interpretação estruturalista e a-histórica da diferença sexual, mas um afastamento crítico de diagnósticos rápidos obtidos – por exemplo -, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e suas implicações nos processos de medicalização das existências e dos discursos generalizantes sobre os sujeitos.

Nessa perspectiva, e invocando Paul B. Preciado e Berenice Bento, Pombo – ao apontar para uma “mutação da clínica” (Pombo, 2020: 50), assinala que a política queer não repousa sobre uma identidade natural, ou sobre determinadas práticas, mas sobre uma diversidade que se levanta contra regimes que ditam o que é “normal” e o que é “patológico” (Pombo, 2020: 45); assim, a teoria queer “nos possibilita pensar e positivar as transexualidades como posições subjetivas múltiplas, em vez de desvios de uma norma binária transcendente e estruturante da cultura e das subjetividades” (Pombo, 2020: 46).

Por fim, mas não menos importantes, destaco as discussões de Paula Gaudenzi em Ressonâncias trans: reflexões sobre o encontro clínico, e de Nelma Cabral em O clamor das mulheres trans. Gaudenzi, ao partir da ideia de que termos como sexo, sexual, sexualidade, identidade sexual e identidade de gênero estão cada vez mais presentes nos estudos no campo das ciências humanas, e mais especificamente no campo psicanalítico, assinala para a importância de uma prática clínica que dê conta da multiplicidade do sexual como uma problemática contemporânea. Trata-se de dar conta de que num dado tempo e espaço, a psicanálise “perdeu suas dimensões ética e política como discurso teórico e se restringiu a uma perspectiva terapêutica” (Gaudenzi, 2020: 28).

Contudo, a autora indica que psicanalistas atualmente são convocados a se implicar como sujeitos sociais, e refletir criticamente sobre a escuta do que é considerado socialmente abjeto. Nessa ótica, a autora propõe pensar a questão trans a partir da lógica de uma sexualidade no sentido mais amplo, tal como propõe a clássica discussão freudiana; atenta à percepção de que a narrativa dos pacientes se empobreceu, e de que há também uma “depauperação” (Gaudenzi, 2020: 35) da escuta do analista, ao tomar o termo “trans”, Gaudenzi mergulha nas possibilidades do verbo “transitar” (Gaudenzi, 2020: 27), e na ideia de “trânsito” como movimento, dando um bom exemplo de que a escuta no processo analítico se dá na relação de alteridade, na aproximação do “discurso da arte erótica (…) modos de gozo” (Gaudenzi, 2020: 36) com que os sujeitos estabelecem seus caminhos pulsionais.

Cabral, por sua vez, concentra suas reflexões sobre o afeto de ódio e o modo muito específico como mulheres trans são assassinadas – “de forma brutal” (Cabral, 2020: 55). Tomando como ponto de partida o caso do assassinato da travesti Dandara, ocorrido no ano de 2017 em Fortaleza, no Ceará, a autora traz a definição do termo transfeminicídio, cunhado por Berenice Bento e discutido também por Jaqueline Gomes de Jesus (2018) em diversos trabalhos, para admitir uma hipótese: a de que há na base dos crimes brutais a “admissão da existência de uma natureza, de uma essência universal masculina e outra feminina” (Cabral, 2020: 55). Para a autora, trata-se de um poder de “matriz heterossexual” fundado na ideia generalizada de uma natureza que cruelmente organiza, distribui, impede e esfacela a manifestação de “qualquer vestígio das marcas e emblemas femininos” (Cabral, 2020: 59). Humilhações públicas, constrangimento no espaço familiar, violência física, assassinatos; ainda segundo Cabral, é possível pensar que o ódio assassino “não diz respeito às transexuais mulheres, mas a algo mais, algo específico do feminino” (Cabral, 2020: 65) e que em certo grau ameaça o homem e sua masculinidade. Uma questão intrigante para se pensar os crimes de ódio e suas relações com uma performance de feminino que rompe não apenas com a moralidade individual conservadora que ganha fôlego no atual momento sociopolítico brasileiro, mas que rejeita ou se desconecta do referencial fálico e provoca a “emergência do mal radical, da pulsão de morte, em sua autonomia destrutiva” (Cabral, 2020: 70).

Uma obra que não encerra as questões nele contidas, e por isso instiga estudantes, pesquisadores das ciências humanas e profissionais da área psi reflexões a colocarem sob escrutínio o pensamento conservador sobre as sexualidades.

Não só isso, é um livro que aponta para uma prática clínica alinhada à despatologização das transexualidades, e que as pensa como um lugar estratégico de transformação das subjetividades, que potencializa e desenvolve o conhecimento da psicanálise e do ofício de uma escuta clínica ampla e sensível às questões da atualidade.

Fonte: https://www.scielo.br/j/sess/a/cfKDZhXwKXJyFxPLxHrCZ7N/?lang=pt

Ensaios sobre as transexualidades: diálogos entre psicanálise e estudos de gênero

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