Perché mi piace – A vida com elas

Perché mi piace: um livro com mais de 40 autoras (45, se contarmos prefácio e orelha). Nenhuma delas escritora profissional. A única relação entre si é serem de algum modo próximas à organizadora. Um livro sem tema. Como pode “ficar de pé”? Nessa resenha, é essa a pergunta que quero tentar responder.

“Cansada da fórmula postulada de que mulher não é amiga de mulher, ou de ser lembrada de que uma mulher quando fala a outra mulher tem sempre algo desagradável a dizer, reuni todas as de que gosto e que admiro. Para lhes falar, para lhes convidar a dizer o que pensam. Para que escrevessem o que quisessem” (p. 11), nos conta na abertura do livro a organizadora, a psicanalista mineira/paulistana Maria Letícia Reis. Desse modo, é claro que o que temos em mãos com Perché mi piace (PMP a partir de agora) é um livro um tanto quanto diverso, para não dizer, em alguns momentos, desigual. Afinal, com esse número de autoras, num livro sem tema fixo a não ser o projeto de mulheres colocando em ato o desejo de escrever sobre o que quisessem, não teria como ser diferente. O que encontramos é uma grande variedade de assuntos, formas e qualidade de escrita: desde textos maravilhosos, cuja potência chega a nos tirar o ar, até outros cuja motivação mais parece ter sido não negar o convite de uma amiga do que uma escrita com algum tipo de questão ou desejo de existir – a balança pesando, felizmente, muito mais para o primeiro caso do que para o segundo; variedade de formas, também, já que temos ao menos quatro configurações de escrita, sendo cartas, contos, ensaios e poesias. Variedades que produzem no leitor a deliciosa sensação de estar numa roda, ouvindo histórias, talvez uma fogueira e muito vinho. Destaco alguns textos:

Com “Porque Paula era Paula e eu era eu”, Ana Galletti M. de Oliveira nos traz uma carta para sua amiga de infância, com quem descobriu o que ela chama de “marca da incompletude” (p. 40), o alívio de se saber imperfeita junta às imperfeições da outra, que serve tanto como espelho quanto como verdadeira alteridade, ao lhe devolver suas próprias questões de um modo leve e cômico, lembrando a ideia de uma “função fraterna”, recuperada junto ao psicanalista Joel Birman, de “servir de testemunho da existência de alguém” (p. 34).

No ensaio “Filha de uma puta conversa”, Priscila Venosa joga com a tensão entre as imagens da mãe santa e da mãe puta, para enxugar seu percurso na maternidade, em passagem brilhante, até a posição de mãe, sem mais: “que sua mãe era uma mulher louca, que sua mãe era uma mulher fraca, que sua mãe era uma mulher, que sua mãe era uma, que sua mãe era. De ponto em ponto a menina foi subtraída, mas quase nem notou, pois onde pesava o adjetivo, pesou o substantivo e sorrateiramente chegou-se ao verbo, cujo sujeito era a mãe” (p. 109).

Em “Hoje”, Ana Laura Prates faz um caminho extremamente vigoroso de toda frieza científica e assepticidade opressoras da passagem por um hospital da elite paulistana à notícia do assassinato de Marielle Franco: “mataram Marielle de amor, bem junto ao passo do passista da escola de samba no largo do Estácio? A face do amor ao próximo tão próximo e tão outro que vira ódio, não é, Freud? Mataram-na porque ela ousou perguntar por que a guerra, não foi, Einstein? As balas cavaram buracos em seu corpo negro, fazendo vazar o sangue vermelho e quente, igual ao da professora, igual ao que acabara de ver saindo do corpo do meu filho, para o progresso da ciência” (p. 129).

“Lembranças improváveis de um narrador plausível” traz a posição um tanto quanto corajosa e aberta de Paula Pires, ao se perguntar sobre a memória do psicanalista, expondo suas questões como profissional, seus próprios lapsos e dificuldades, sem a necessidade de uma palavra final para sua própria indagação: “atores dizem se beneficiar por viverem muitas vidas ao representá-las. E o psicanalista? Para onde vai esta memória? Da mesma forma que dizemos da memória do corpo quando fazemos exercícios físicos, temos uma memória de que natureza em relação a estas histórias? Quem não teve dúvida sobre a origem de uma cena? Era um filme? Um sonho? Alguém me contou? Eu vivi?” (p. 174).

Em “Famintas”, Lua Santosouza traz o texto mais perturbador do livro, com uma escrita disruptiva que choca o leitor ao mostrar o lado mais sombrio da feminilidade, na sua relação com o impossível da sexualidade e da maternidade: “Piscavam os cílios confusos, eriçavam-se os pelos delirantes e os dentes impacientes trincados em meio à saliva ácida do apetite se desmanchavam junto a mulher. Filha, não suportava me ver fora de mim. Nossos sorrisos eram iguais. Era insuportável. Filha, não suportava que você me precisasse tanto” (p. 295).

Amizade, narrativa, política, trabalho, disrupção: haveria como pensar algo de uma escrita feminina a partir dos temas? Acredito que se formos por esse caminho, cairemos em chavões um tanto quanto conservadores e moralistas a respeito do feminino, como afirmar que a escrita feminina passa por questões íntimas e afetivas, muitas vezes tomadas como menores frente ao masculino e uma certa relação com o universal. Aproveitando o teor lacaniano de vários dos textos de PMP, que possamos, então, recorrer à psicanálise pra pensar de um modo mais interessante o que poderia ser da ordem do feminino no livro.

Pois há em Jacques Lacan uma forma bastante instigante de pensar o que seria a diferença entre dois campos na ordem do masculino e do feminino. Creio, e essa é uma discussão teórica que não cabe abrir aqui, que se trata muito mais de pensar duas formas de discurso, de relação com a linguagem, do que determinações que dizem respeito ao fato de ter ou não ter um pênis. Pois o universo masculino seria aquele que se constitui por uma determinação “fálica”, ou seja, organizado pelo que Lacan chamou de significante fálico, que faz a relação entre as cadeias significantes e suas produções de significado – para além do “lacanês”, um discurso que se constitui através da produção de sentido, da possibilidade de uma produção discursiva que tenha alcance universal. Já o feminino (que, ao contrário do masculino, não cabe chamar de universo, posto que nunca se permite fechar em nada que busque uma unificação) diria respeito ao que escapa a isso: uma forma de discurso que se posiciona às margens do sentido, algo que aponta para os furos daquilo que tenta se colocar de maneira totalizante na linguagem. Desse modo, a posição feminina seria muito mais uma espécie de lugar em que ninguém habita, mas perpassa, ocupando como contingência, desocupando por necessidade. Não se trata de um modo de estar no mundo, mas de uma forma de discurso que leva em consideração os próprios limites internos da linguagem, que se coloca de forma agonística em relação à produção de sentido, tanto na sua falta quanto no seu excesso. Que, fenomenicamente, tenhamos uma distribuição desigual quanto à repartição entre homens e mulheres que habitam essa abertura do discurso feminino, já que as mulheres tendem a ocupar os furos de sentido de maneira muito mais frequente e livre do que os homens, eis algo que não se trata de uma necessidade estrutural, mas de uma correlação possivelmente histórica e social – novamente, uma discussão que não cabe aqui desenvolver.

Dado isso, me pergunto se o livro não teria o mesmo efeito de feminilidade, de momentos de abertura para algo que se constitui nessa fenda no meio da produção de sentido de um discurso universal, se ele fosse escrito por 45 homens, dentro da mesma orientação. Afinal, não teria sido a própria proposta de um livro sem tema, apenas com a chamada de “escreva o que quiser, como quiser, da forma que quiser”, que sustentaria esse convite ao feminino de PMP? Entendo que há algo desse lugar da exceção e do excesso, da margem e do furo, que se apresenta já na proposta feita pela organizadora. É verdade que não podemos ignorar que livros escritos apenas por homens estão muito mais como regra do que exceção, mesmo dentro de um campo como o da psicanálise, majoritariamente feminino. Fato que tiraria desse hipotético “a vida com eles” todo um lado de posicionamento político que o livro traz, apenas por existir. Sem dúvida que houve algo no convite da organizadora que produziu um efeito temático: que as autoras soubessem que seria um livro escrito apenas por mulheres trouxe a recorrência de algumas questões, desde a pergunta mais clara sobre o que é ser uma mulher até indagações sobre maternidade, sexualidade, feminismo, etc. Não se trata de afirmar que haveria uma temática em comum que perpasse todos os textos, mas de ouvir um certo eco de questões que muitos dos escritos produzem em quem os lê. Como se o livro conseguisse ressoar algo do que estariam pensando, vivendo, desejando e fazendo as mulheres, ou ao menos um certo recorte social e local das mulheres.

Um desses temas que se repetem entre os textos diz da urgência de uma nova forma de socialização que não mais se estruture através de relações de rivalidade entre as mulheres. Não se trata de prescindir da rivalidade, afeto tão humano que passa por cima de qualquer diferenciação de gênero, mas de novas configurações de vínculo que não tenham na rivalidade o seu motor. Nesse sentido, trata-se de um livro propositivo, que pulsa, desde a proposta, essa nova forma de enlaçamento feminino para além das posições estruturadas pelo patriarcado. Um livro que nos pergunta sobre a potência que pode ser a vida diante da desconstrução das velhas formas machistas de organização social e subjetiva. Afinal, PMP carrega a marca de uma resistência político-afetiva frente aos difíceis tempos que o mundo, e particularmente o Brasil, está atravessando, e não apenas em termos claramente políticos, mas também nesse clamor e produção de novas formas de vínculo entre as mulheres (que exige, como efeito, um reposicionamento das próprias posições masculinas) que questionam toda uma ordem sócio-histórica. Se lembrarmos que o discurso vencedor nas eleições presidenciais de 2018 foi o de um retorno sintomático a uma época mítica de uma autoridade masculina potente e viril, PMP traz a lufada de uma nova forma de política dos afetos, que não trabalha mais com fronteiras rígidas entre a culinária e Marielle Franco, nuances da vida e feminismo negro. O que segura PMP de pé é, afinal, a vida com elas: a potência do convite ao feminino.

Luiz Fernando Botto Garcia

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