Viviana S. Venosa

Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.

“Olhe, Caeiro… Considere os números… Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número — 34, por exemplo.
Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior.”
“Mas isso são só números”, protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
“O que é o 34 na realidade?”
(Álvaro de Campos, em: “Notas para a recordação de meu Mestre Caeiro”)

Perché mi piace falar de culinária e gastronomia, e perché mi piace falar de psicanálise. São dois dos meus assuntos preferidos na vida, assim superlativamente mesmo.

Muito se fala dos afetos na hora de cozinhar, que cozinhar é um dom, que cozinhar é um ato de amor etc. Mas será mesmo? Quem cozinha todo dia, no âmbito doméstico ou em restaurantes, sabe que se trata mais de uma tarefa de paciência e persistência do que de “amor” no sentido romântico do termo. Querer que o outro goste daquilo que cozinhamos pode até ser uma demanda de amor, mas cozinhar tem mais a ver com a materialidade dos ingredientes e as suas propriedades físico-químicas do que com afeto.

Para tal intersecção entre culinária e psicanálise, pretendo utilizar a palavra “materialidade” como dobradiça entre os campos. A ideia é operar uma distinção, por meio da noção de materialidade, de modo a fazer uma provocação e deslocar o afeto como lugar-comum e privilegiado desta intersecção.

Começarei com um simples exemplo: vemos uma foto de um prato, ou comemos algo em um jantar na casa de amigos, ou qualquer situação semelhante. Se gostamos (e gostamos de cozinhar), de pronto perguntamos: “como faz?” Logo após a lista de quantidades de ingredientes, mais ou menos precisa (ou seja: número de ovos é impreciso, xícara é impreciso; medidas convencionadas têm mais precisão. Lembremos que, na confeitaria profissional, muitas vezes até os ovos vêm em medida de peso, por exemplo), e então, logo após esta lista, segue uma “receita”, um modo de fazer, em imperativos: “separe, pique, aqueça, retire, reserve, misture… etc”, e quem cozinha vai tentar obedecer às tais ordens, sejam elas mais precisas ou não. E, por vezes, pode até desobedecer, mas com quais bases? Geralmente, com base em uma herança que passa por variações de “minha mãe fazia assim…”.

E dá certo, ou seja, o resultado final é o que se pretendia? Às vezes sim, outras, não. Quando não dá certo, começam alguns dos problemas. Vou usar como exemplo o pudim de leite e ovos: muitos se perguntam por que seus pudins ficam com furinhos (e não com um único grande furo no meio!). E, na grande maioria das vezes que presenciei conversas sobre as soluções para evitar os furos, encontrei respostas como: “Depois de bater no liquidificador – isso no caso do pudim com leite condensado, em que é comum, no imperativo das receitas, encontrar descrito que os ingredientes devem ser misturados nesse artefato – deixe descansar para “tirar as bolhas” (sic). Esse tipo de resposta tem, em sua lógica, uma razão infusa. E por quê? Há uma ignorância em relação ao “comportamento” dos ingredientes neste modo de modificação das matérias-primas em alimentos, chamado cozinhar. Ora, estou me referindo, pois, à materialidade mesma dos ingredientes e o que acontece com eles nas determinadas condições às quais são submetidos para alcançar tal ou tal resultado. Trata-se de conhecimento físico e químico destas materialidades: a proteína dos ovos, por exemplo, coagula ao ser submetida a altas temperaturas. Se o forno estiver muito quente, portanto, o líquido do pudim vai ferver, formando bolhas. Ao coagular, as bolhas permanecerão lá, em forma de furinhos.

De modo mais simples: a água ferve sempre a 100 graus célsius (ou o correspondente fahrenheit), onde a pressão atmosférica é de 1 atm, ou seja, ao nível do mar. A variação desta medida de convenção vai depender da quantidade de impurezas na água e da pressão atmosférica. O pudim, portanto, deve ser feito em temperatura inferior ao grau de fervura, para que coagule lisinho.

Não há “alma”, amor ou ódio do cozinheiro que possa mudar isso. No frigir dos ovos, o que interessa é se você prefere sua gema mole ou cozida e como você vai fazer para realizar seu ovo frito perfeito e predileto.

A questão da transmissão em culinária é atravessada um tanto por esses aspectos do conhecimento científico ou empírico do que se passa com a materialidade dos ingredientes.

Bem, e algo mais ou menos semelhante, no sentido que eu falei de “dobradiça”, pode acontecer em psicanálise. Em “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise” (1953), Lacan comenta que o campo central da psicanálise, que é o campo da linguagem, se dá em virtude de uma crescente obliteração do sentido da obra de Freud.

Será que nós, psicanalistas, fomos tornando-nos meros reprodutores tecnicistas de um “formalismo levado ao cerimonial, a tal ponto que podemos indagar-nos se não sucumbe à aproximação mesma com a neurose obsessiva através da qual Freud visou tão convicentemente o uso, senão a gênese, dos ritos religiosos?” (Lacan, 1953)

O que leio em Lacan é que os escritos técnicos de Freud, em sua maioria, passaram a ser tomados como uma pretensa garantia do campo psicanalítico como uma receita: contrato onde são negociadas faltas, férias, número de vezes por semana, enfim, o que se deve ou não fazer para ser considerado, aquele processo, uma análise. A crítica de Lacan, é bom ressaltar, não incide em desconsiderar que aqueles que sabem bem pilotar essa técnica sejam, em si, maus analistas. Longe disso. A dobradiça com a culinária também vale, sabendo ou não o que se faz ao cozinhar, pode-se atingir ótimos resultados. O que Lacan criticava era a formação dos analistas: será que sabemos o que fazemos, simplesmente pelo fato de termos “carta de habilitação para pilotar um divã”?

Gostaria de acrescentar aqui que, passados mais de 60 anos da escrita desse texto de Lacan, bem como quase 40 anos de seu falecimento, de nada adianta se dizer “psicanalista lacaniano” para estar longe desta querela. Inúmeras vezes, presenciei lacanianos reproduzindo aforismos em um mero blablablá de palavra vazia. O que, logicamente, dá na mesma: reprodução do que fazer, ou reprodução do que falar, meramente para atender a critérios escolares de “fazer certo”, são reproduções de toute façon.

Muitos conhecem o célebre “chiste” que Lacan faz, quando diz: “lacanianos são vocês, eu sou freudiano”. Como eu leio este chiste? Ora, como um convite de Lacan para que façamos com seu ensino o mesmo que ele fez com Freud, ou seja, dar algo de si e levar ao pé da letra que só é possível realizar releituras. Lacan pega o que herdou de Freud e conquista-o para fazê-lo seu – digo isto referindo-me ao famoso verso de Goethe citado por Freud. Sejamos então tentados a esta posição.

Ora, leio que Lacan propõe, durante toda a sua obra, que o campo da linguagem exige que o psicanalista se debruce sobre a função da fala (e o Real que ela produz). E, aqui, aproveitando a “dobradiça” à qual me refiro desde o início, entra a pergunta: qual seria a materialidade, então, da psicanálise?

Vários fios podem dar início a este debate: proponho que pensemos a questão do corpo. Ora, se um dos modos de ler a “subversão do sujeito” que Lacan propõe para o campo da psicanálise é ler que se trata da subversão do sujeito cartesiano (res cogitans X res extensas), de que adianta, em nosso campo, que é o da psicanálise, continuarmos tratando a psique em oposição ao soma?

Muitos entendem que a linguagem, em nosso campo, seria uma espécie de “colonização” do corpo, dando-lhe referentes – que, em termos freudianos, seriam sempre sexuais.

Mas se, ao invés, disso, tomarmos a sério o que Lacan mesmo diz em “Radiofonia” (1970), tal seja:

Volto primeiro ao corpo do simbólico, que convém entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem que lhe confere, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar.

O primeiro corpo faz o segundo, por se incorporar nele.

Daí o incorpóreo que fica marcando o primeiro, desde o momento o momento seguinte à sua incorporação. Façamos justiça aos estóicos, por terem sabido, com este termo – o incorporal –, assinalar de que modo o simbólico tem a ver com o corpo. (Grifos meus)

De que modo? De modo incorporal. Em minhas recentes pesquisas sobre o conceito de incorporal no estoicismo antigo, chego à seguinte síntese: tudo aquilo que existe é corpo. De modo que corpo é tudo aquilo que age e padece. Corpo e causalidade, portanto, estão imbricados. No entanto, os efeitos destas causas são incorporais. Para os estoicos, há quatro categorias de incorporais: o lekton (ou exprimível), o lugar, o tempo e o espaço.

Para exemplificar: um braço que tenha sido cortado por uma lâmina é um corpo-braço que sofreu uma ação-causa de um corpo-lâmina, mas em nada mudou as propriedades do corpo braço, apenas lhe conferiu o efeito-atributo: braço-cortado.

Voltando a Lacan, entendo que, ao dizer que os únicos fatos que existem em uma análise são os fatos de discurso, o autor afirma que a única materialidade em psicanálise é a materialidade significante. Com isso, opera uma espécie de torção moebiana no conceito de incorporal dos estoicos. Tal seja: o atributo incorporal enquanto efeito de superfície, é – ele mesmo – a materialidade significante, repito: “a tal ponto que ele [o corpo] não existiria se não pudesse falar”.

Vale dizer que Lacan não nega que o soma exista. Seria uma estupidez que eu, ao quebrar um braço, fosse ao analista esperando que o osso fosse cauterizar. São campos diferentes. Por isso, também a materialidade dos ingredientes em culinária é uma, e a materialidade significante em psicanálise é outra. É isto que chamo de “dobradiça”, uma mesma palavra, que opera como noção diferencial para o estabelecimento de campos respectivos.

Isso significa dizer que, se o ovo – materialmente – é frito da mesma forma, de acordo com sua materialidade e condições tais e quais de temperatura e pressão, um analisante, ao falar de ovo frito na análise, cria algo – dentro de um outro campo – a partir da materialidade significante. Mais ainda, quando falamos de um analisante como tendo determinada relação com a comida, não estamos falando da mesma comida que se fala (materialmente) em culinária. E que esta comida, enquanto fato de discurso dentro do campo da linguagem não é um objeto, senão pelo seu valor significante.

É justamente por operar uma disjunção entre significado e significante que isto é possível. Seguem dois exemplos de chistes:

  1. Foi muito inteligente ela ter usado o cérebro.
  2. Primeiro vem fulana e me fode com a língua, depois vem beltrana e me fode com o rabo.

Estas são duas falas retiradas do programa Masterchef Profissionais, edição 2017. Fica evidente, dado o contexto, que “cérebro”, “foder”, “língua”, “rabo” tem em si a propriedade do bífido do significante. No entanto, fora do campo psicanalítico, não passam de meros chistes, e nada (ou muito pouco) se pode fazer, enquanto trabalho analítico, com isso. Se, de outro modo, essas frases tivessem sido ditas dentro de uma análise, talvez, se poderia ter notícias da lógica da fantasia do analisante. Mas não isoladamente, é claro. Demonstrar a clínica não é mera coleção de chistes ou jogos de palavras.

No que consiste demonstrar a clínica psicanalítica? Ora, se no campo da gastronomia trata-se de uma demonstração de como as propriedades materiais do ingrediente se comportam, sem que isso seja mera reprodução técnica ou “mágica”, penso que, no campo da psicanálise, de certa forma, podemos falar em algo semelhante.

Eu mencionei no início que considero um problema que a psicanálise se torne mera reprodução técnica. Também considero um problema que, ao falar de casos clínicos, pouco se demonstre da operacionalidade lógica de como se deu a análise.

Ou seja, na culinária, mas principalmente na área da restauração em gastronomia, a reprodutibilidade técnica denuncia um fazer sem saber. Uma reprodutibilidade de acúmulo de conhecimento, mas sem o saber do campo em questão. Na psicanálise, o tecnicismo do conhecimento e o acúmulo de horas de voo na clínica não garantem a transmissão de seu saber.

Em psicanálise, o saber implica perda (vale dizer). E a transmissão do saber-fazer tem duas implicações.

A primeira é que, ao se escrever a clínica, o que se demonstra é “psicanalista”. Isso quer dizer que se trata da demonstração de uma teoria que faz operar a psicanálise. Sempre se tem a teoria de antemão, e isso não é um problema. O problema é não saber que a tem, achar que o contato com a “realidade” faz a teoria empiricamente e, pior ainda, não saber qual é essa teoria e o campo que ela determina.

A segunda é que saber-fazer em psicanálise, no recorte que proponho aqui, implica – lançando mão da teoria sobre a materialidade do significante enquanto fato de discurso (tal qual proponho em meu recorte aqui) – lidar com o fracasso. A tal da perda, implicada no saber em psicanálise. Ora, se o campo é da linguagem, e não temos outra materialidade que não a do significante, não é possível falar da linguagem desde “fora” dela. Aqui está o paradoxo lógico, que Lacan resumiu no aforismo “não há metalinguagem” e, ao falar, perdemos. Perda esta que é um ganho, quando tem valor decisório.

Disso deriva que uma análise não é atribuição de significado, causal, a um sintoma. Lembram do efeito incorporal, que não se trata de causa? Pois bem, se as pessoas nos procuram porque algo não funciona (supõe a maioria que o que não funciona é o “psíquico”), não é explicando conhecimentos sobre significantes que vamos tratá-las, isso seria hermenêutica ou mera atribuição de significado causal. Trata-se, de outro modo, de um efeito no campo da linguagem. Efeito este que Lacan chamou de ato analítico. E que pode ser dito como ser consequente com o que se fala, mesmo que – por vezes – seja Isso que fala em mim e por mim.

No campo da culinária, eu disse que é fundamental conhecer, por exemplo, que a água ferve aos 100º Célsius no nível do mar. Então, no campo da psicanálise o que poderia ser 100º C, afinal? Nada que não possa ser escutado a partir da materialidade significante. E é esta materialidade – moterialisme[3] – que confere consistências às histórias culinárias, com seus gostos e afetos envolvidos, tendo efeito de acontecimento e permitindo mudar tudo o que uma simples insígnia científica de temperatura poderia indicar.

  1. Este texto é produto de uma apresentação que fiz na oficina “Cozinha Como Experiência”, em 19/10/2017.
  2. Viviana cozinha em caráter doméstico para os amigos e também faz curadoria de ingredientes. Gosta de fotografar comidas com seu espertofone, porque sim. Ocupa o lugar de psicanalista para aqueles que a permitem. E seu gênero preferido no cinema é ficção científica, mas ultimamente tem se aventurado a ver alguns filmes de terror.
  3. Neologismo de Lacan que indica a materialidade na psicanálise, condensando as duas palavras francesas: mot e materialisme, formando a palavra moterialisme e designando a materialidade significante

Publicado no livro Perché mi piace – A vida com Elas.
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